O suposto credor pode ser o devedor
Os contribuintes que prestaram serviço para fora de Barueri têm o direito de reaver todo o ISS recolhido para o município até 2018
Recentemente, diversos contribuintes prestadores de serviços estabelecidos em Barueri foram surpreendidos com cobranças de ISS pelo município. Para entender a origem dessas cobranças, é importante rememorar que, até 1º de fevereiro de 2018, o Código Tributário de Barueri previa que a alíquota de 2% do ISS devido em seu território incidiria apenas sobre a receita bruta decorrente da prestação de serviços, excluindo-se os tributos federais (IRPJ, CSLL, PIS e Cofins).
Em 1º de fevereiro de 2018, Barueri então revogou tal previsão de exclusão dos tributos federais da base de cálculo do ISS. A revogação teve uma motivação: em 29 de dezembro de 2016 entrou em vigor a Lei Complementar nº 157, alterando as regras nacionais de ISS contidas na Lei Complementar nº 116.
Uma das novas regras nacionais instituídas pela Lei Complementar nº 157 e imposta a todos os municípios do Brasil foi a impossibilidade de diminuição da base de cálculo do imposto que implicasse minoração indireta da carga do ISS para abaixo de 2% sobre o preço do serviço. Tal lei nacional ainda deu o prazo de um ano para que os municípios se adaptassem a essa regra, que visa combater a guerra fiscal entre municípios.
Como a dedução dos tributos federais da base de cálculo do ISS garantida até então aos contribuintes de Barueri diminuía indiretamente a carga tributária do imposto para menos de 2%, o município revogou tal “benesse”, dentro do prazo dado na Lei Complementar nº 157. Mas antes da revogação já tramitava perante o STF a ADPF nº 189, ajuizada pelo governador do Distrito Federal contra o município de Barueri, contestando exatamente essa dedução que a legislação de Barueri concedia aos seus contribuintes de ISS, como forma de atrair empresas a se instalarem por lá.
A ADPF nº 189 foi julgada procedente pelo STF em 21 de agosto de 2020, declarando-se a parte do Código Municipal de Barueri que concedia as deduções como inconstitucional. O julgamento, a princípio, surtiu efeitos inclusive para fatos geradores anteriores à revogação do benefício (ocorrida em 1º de fevereiro de 2018), já que não houve modulação dos efeitos da decisão pelos ministros quando do julgamento do mérito, sendo regra no ordenamento jurídico brasileiro que as declarações de inconstitucionalidade têm efeitos retroativos.
Assim, Barueri passou a cobrar de seus contribuintes retroativamente o valor do ISS sobre os tributos federais, que tinha deixado de ser recolhido até 2018, em razão da legislação municipal revogada. A cobrança retroativa se mostra contraditória, já que o próprio município de Barueri requereu ao STF na ADPF nº 189 a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, para que só surta efeitos a partir da data do julgamento para frente, pedido esse ainda pendente de julgamento.
Mas a cobrança retroativa contraditória tem um motivo. É que a Lei Complementar nº 157 qualifica como ato de improbidade administrativa manter ou cobrar o ISS com base em benefícios fiscais inconstitucionais. Então, a cobrança retroativa foi uma forma malsucedida que o município de Barueri encontrou para livrar seus administradores de acusações de improbidade administrativa.
Os contribuintes que prestaram serviço para fora de Barueri têm o direito de reaver o ISS recolhido até 2018
Malsucedida pois, enquanto isso, para os contribuintes que têm judicializado a questão, a Vara da Fazenda Pública Municipal da Comarca de Barueri já vem, em diversas decisões, rechaçando a cobrança retroativa. No entanto, ao se preocuparem em demonstrar que o suposto credor (Barueri) não tem direito de cobrar o ISS, muitos contribuintes acabaram não notando que, além de Barueri não ser credor, na realidade pode ser o devedor.
Explica-se: mencionamos acima que em 29 de dezembro de 2016 entrou em vigor a Lei Complementar nº 157, uma norma nacional que, dentre alguns objetivos, visou ao combate das guerras fiscais entre municípios. Assim, a referida lei complementar vedou aos municípios a erosão da base de cálculo do ISS que implicasse carga tributária menor que 2% sobre o preço do serviço e, para os municípios que descumprissem tal regra, impôs duas penalidades bem severas: (i) o enquadramento como ato de improbidade administrativa (mencionado acima), e (ii) a devolução aos contribuintes do ISS calculado com a base de cálculo diminuída, em caso de prestação de serviço para tomadores localizados em outros municípios.
Essa última penalidade mencionada aplicável à Barueri está prevista no artigo 8º-A, parágrafos 2º e 3º, da Lei Complementar nº 116, alterada pela Lei Complementar nº 157, e, basicamente, diz que a nulidade gerada com a instituição do ISS que não respeite a alíquota mínima de 2% em caso de prestação de serviços intermunicipais “gera, para o prestador de serviço, perante o município (…) que não respeitar as disposições deste artigo, o direito à restituição do valor efetivamente pago do Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza calculado sob a égide da lei nula”.
Como comentamos, o STF declarou inconstitucional e, consequentemente, nula a lei municipal de Barueri que previa o ISS abaixo de 2% sobre o preço do serviço, em razão das deduções de base de cálculo lá permitidas. Não houve modulação de efeitos da decisão, pelo menos até agora; e como o artigo 8º-A, parágrafos 2º e 3º, é bem claro, não é Barueri que tem o direito de cobrar retroativamente os valores deduzidos pelos contribuintes. Na verdade, são os contribuintes que prestaram serviço para fora do município que têm o direito de reaver todo o ISS recolhido para Barueri até 2018.
Por isso, não se enganem. O suposto credor pode ser o devedor.
Fonte: Valor Econômico – Opinião Jurídica por Caio Malpighi